O mito da boa causa: a lógica do mensalão e a ameaça à
democracia
Jornal do Brasil
Paulo Rosenbaum
O povo brasileiro mistura ingredientes paradoxais: malícia
para a vida quotidiana e desconcertante ingenuidade política. Mas não é preciso
ser gênio para perceber que se a sociedade não se mobilizar – como fez
recentemente em outras votações – terá que engolir uma grande armação. Percebe-se forte movimentação nos bastidores
do julgamento do mensalão, o processo político-institucional mais documentado
da história republicana. Com muito custo, advogados dos réus tentam limpar o
rastro de sujeira que seus clientes deixaram enquanto se arranjavam para
conquistar, manter e ampliar o poder no início da era Lula.
Menos previsível que o ato do poder ávido e corruptor é a
lógica que o inspirou. E ainda inspira! O óbvio merece ser relembrado: um dos
pilares axiológicos da democracia é a moderação/controle que o Poder
Legislativo deveria exercer sobre os demais. O mensalão – que prossegue com
réus em julgamento, malgrado impunes – foi apenas um plano desmascarado como
crime eleitoral. O gravíssimo é que prossiga incólume, ainda que com outras
características.
Comprar apoio de deputados para governar, usando
supersalários ou acordos secretos que fomentam o clientelismo é ameaça séria ao
Estado democrático. Nostálgicos do poder absoluto, essa turma quis ressuscitar
a versão tropical do centralismo partidário, vale dizer, modelar a máscara para
uma neoditadura. Incrível, mas até aqui
a lógica tem sido bem sucedida. Flagrados no crime eleitoral, se sustentaram
com malabarismos e composições curiosas para o partido que monopolizou o slogan
Ética na política. Terminaram na mesma vala comum da maioria dos moralistas:
ética para os demais!
Hoje, nós os gatos escaldados, enxergamos que o telhado de
vidro existe e é coletivo. Nesse caso
especifico do mensalão a justiça do país tem uma dívida especial com os
cidadãos, que vai muito além do sistema de penalidades que o sistema jurídico
costuma aplicar para dar consistência ao estado de direito. O que está em disputa é a manutenção ou
interrupção do aval para jogo perigoso dentro da área.
Quem detém poder sempre pode mudar as regras do jogo, e a
sociedade que se ajoelhe diante das arbitrariedades. Mas não lutamos justamente
contra o arbítrio que cassou a voz da sociedade e o Brasil durante décadas? Se
houver condescendência com o “mito da boa causa”, a próxima vítima será a
democracia.
Convencido pelo apoio popular à estabilidade econômica, o
regime aspira hegemonia e flerta com o totalitarismo. Vale dizer, a tese que os
inspira não é só contar com a prescrição da pena. Sabem que sob a abundância de
provas documentais e testemunhais existentes isso seria escarnecer da sociedade.
A tática agora é convencer a opinião pública de que os críticos da atual
administração são conspiradores e “de direita” – como se não fosse plausível
uma oposição à esquerda e fora das hostes ressentidas.
Melhor seria se réus e patrocinadores se comportassem como o
mestre de Platão. Sócrates não só aceitou a pena como recusou-se a fugir ou ser
ajudado por sofistas. Para o sábio – detalhe vital, ele era inocente – enfrentar o julgamento
dignificava a democracia grega. E ainda que considerasse injustas as acusações
explicadas pelas motivações pessoais dos adversários – submeteu-se aos
resultados e enfrentou seu destino.
Não basta sucesso econômico, distribuição de renda, e
superação dos bolsões de miséria. Há uma fome por justiça. Cresce no país a
oposição sem partido, crítica, mas ainda silenciosa. A nova resistência enxerga
que para sairmos todos juntos da caverna os homens públicos precisam assumir
mais responsabilidades e a sociedade recusar o vale-tudo.
Que sociedade não se arrepiaria com o seguinte anúncio
coletivo:
– Assumimos a culpa e renunciamos aos cargos e mandatos. Não
nos interessa mais a permanência no poder. A única prioridade é a preservação
da democracia e bem-estar das pessoas!
Conforme explicado acima: somos todos ingênuos. Ainda bem!
* Paulo Rosenbaum, médico e escritor. é autor do livro 'A
verdade lançada ao solo' (ed. Record). - paulorosenbaum.wordpress.com
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